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UMA FLOR PARA HIROSHIMA




Carta de Hiroshima
Escrevo-vos de Hiroshima onde sou correspondente de guerra. Do ar caiem ainda corpos aos bocados, como se fosse um avião subversivo a lançar panfletos sobre a cidade. Mas que triste esta propaganda feita de carne e ossos! Pior ainda são os gritos dos cadáveres carbonizados na alegria dos amantes, na tristeza dos esposos sem os filhos ao pé e no desespero de poetas fuzilados enquanto previam a catástrofe. Depois falem-me de paz! … Há sempre assassínios onde quer que o façamos. Por isso nem aceitemos desculpas de pé! Quando se mata se mata morre-se em vida, tragicamente, agonizante nos anos lentos que nos vão acompanhar sem remissão para a nossa consciência. Talvez os outros tenham sempre razão. É fácil ter razão quando se aduzem circunstâncias a maior parte das vezes inacessíveis à nossa ética, ao nosso esforço poético de compreender todo o macabro da vida deturpada em favor de outras razões.
Hoje aqui, em Hiroshima, recuso-me a aceitar. Recuso-me a transgredir no meu sangue. Posso ser outro amanhã, mas hoje recuso-me. Tomemos hoje mesmo todas as atitudes do universo. Escrevamos ao nosso médico de família e censuremo-lo por nos ter deixado viver quando um dia nos salvou de doença grave. Escrevamos ao nosso professor da instrução primária e digamos-lhe como eram estreitos os seus conceitos de deus, de pátria e de família. Escrevamos depois ao nosso antigo catequista, que então nos mostrou uma estampa de criação do mundo, e avisemo-lo de que a nossa sensibilidade de criança, hoje, terá que recusar o mistério da fé se ele permitir esta barbaridade (eu sei, no entanto, que ele está comigo).
Cheira horrivelmente a sangue neste inferno carbonizado. Ouvem-se gritos de meninos sem pernas, de mãos removendo destroços fumegantes em busca dos filhos que andavam na escola, de maridos loucos tentando encontrar a esposa na casa que já não existe.
A boca sabe-nos a fumo e as mãos tremem-nos ao saber que já não há crianças verdadeiramente, nem poetas. Só miséria paira aqui como flagelo de peste duradoira. Só a morte pode sobreviver nesta hecatombe, aquela morte súbita que se esconde em cada gesto humano como pária traiçoeiro, aquela morte que cada um de nós serve e alimenta como verme intestino, para expelir despropositadamente como que atraiçoados por preconceitos e ideologias que não aceita.
Sim, a morte vagueia por Hiroshima e diverte-se com o fogo que alastra de bairro para bairro. O próprio tempo interrompeu-se, como que para negar o futuro a esta cidade desprevenida na catástrofe. Alguns homens buscam ainda vida nos passeios arrancados e nas calçadas esbraseadas. As chamas continuam violentas sobre restos de casas aterrorizadas, janelas esgaseadas, portas esfomeadas por onde saiem cadáveres agarrados a velhas recordações da vida de outrora.
A guerra atraiçoou sobretudo a vida destes inocentes que morreram com flores nas mãos quando brincavam às batalhas entre os canteiros do jardim público. Nem tão pouco o guarda os soube avisar do perigo que corriam! Nem mesmo os adolescentes que se amavam no banco próximo adivinharam a catástrofe. Quando acordaram já só puderam abraçar-se para sempre …
Agora, vinte e quatro horas depois da catástrofe, só fumo paira nesta cidade. É sempre assim. Os homens continuam a ser poetas na guerra. Ultrapassam-se mas aniquilam-se.

(Inédito – do livro a publicar “Metáforas”)
Transcrito do Livro HIROSHIMA com coordenação e prefácio de Carlos Loures e Manuel Simões
e com edição dos próprios coordenadores
Tomar - 1967